quinta-feira, 16 de maio de 2013

A última rainha da França



Menina austríaca que virou soberana da França, Maria Antonieta usou o luxo para se impor na corte de Versalhes. Mas, às vésperas da Revolução Francesa, seu mundo estava condenado a desaparecer.

Virar ícone de uma época – representar uma classe, um modo de pensar e de viver – é destino para poucas pessoas. Uma delas, sem dúvida, foi a austríaca Maria Antônia Josefa Johanna von Habsburg-Lothringen, ou simplesmente Maria Antonieta. O problema é que, dependendo de quem a julga, ela é vista de jeitos completamente diferentes. A controvérsia começou ainda na época de sua morte, no fim do século 18. De um lado, era tida como símbolo da arrogância e da insensatez da monarquia francesa. De outro, era admirada como uma mártir, quase uma santa, sacrificada por loucos que tinham se voltado contra a ordem sagrada das coisas.

Durante muito tempo, a discórdia prosseguiu e, no meio da briga, sobrava pouco espaço para quem queria conhecer a Maria Antonieta de carne e osso. Nos últimos anos, porém, historiadores têm se esforçado para trazer à tona uma imagem mais equilibrada da rainha. Os novos estudos mostram que Maria Antonieta não foi uma mulher fútil e ingênua, mas uma mestra em usar o glamour como arma para se firmar numa corte estranha e hostil.
“Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”, afirma a pesquisadora americana Caroline Weber, especialista em cultura francesa do século 18 e autora de Queen of Fashion (“Rainha da moda”, inédito em português). “Isso mostra que, até certo ponto, ela tinha uma percepção bem sofisticada e muito moderna do poder da imagem para mudar a realidade.”
Mas toda a astúcia com que Maria Antonieta se firmou na corte de seu marido, o rei Luís XVI, não lhe serviu de nada quando estourou a Revolução Francesa, em 1789, que proclamou a liberdade e a igualdade para todos os cidadãos. Foi uma das maiores reviravoltas da história, considerada o marco que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. Era o fim do que ficaria conhecido como o “Antigo Regime”, em que os privilégios da nobreza estavam acima de tudo. Era o fim do mundo de Maria Antonieta.

Tudo para trás

A trágica saga de Maria Antonieta começa em Viena, Áustria, numa corte bem menos chique que a da França. Em 2 de novembro de 1755, a imperatriz Maria Teresa deu à luz uma menina pequenina, porém saudável. Era Maria Antônia, seu 15º bebê. O pai, Francisco I, era imperador do Sacro Império Romano-Germânico (que, naquela época, unia frouxamente algumas nações da Europa Central). Mas, apesar da pompa do cargo, não era ele quem mandava. A titular do comando do Império era Maria Teresa, que também era arquiduquesa da Áustria e rainha da Hungria e da Boêmia (hoje parte da Alemanha).
A imperatriz era uma brilhante estrategista política. Detestava perder tempo – aproveitou o parto de Maria Antonieta, por exemplo, para extrair um dente. Mas, apesar de ser viciada em trabalho, era uma boa mãe. Preocupava-se até com a formação musical dos filhos, que tinham contato com alguns dos músicos mais talentosos da Europa. Um deles foi o prodígio Mozart, recebido em Viena com apenas 7 anos. Reza a lenda que, ao andar pelo chão encerado do palácio, ele teria levado um tombo. Maria Antonieta, meses mais velha que ele, teria corrido para ajudá-lo e lhe dado um beijo na bochecha. “Você é bondosa. Quando crescer, quero me casar com você”, teria dito Mozart.
Mas a mãe tinha outros planos para o futuro da menina. Com a morte de Francisco I, em 1765, Maria Teresa buscou se aproximar das outras cortes européias. Usou uma estratégia bastante comum na época: ofereceu suas filhas em casamento. Maria Antonieta se tornou, assim, pretendente de Luís Augusto, neto do rei francês Luís XV. Com a morte prematura dos pais, o rapaz havia se tornado o delfim, herdeiro do trono. A idéia de Maria Teresa era criar uma aliança duradoura com a França, que vivia entrando em conflito com a Áustria e outros membros do Sacro Império.

A corte francesa resistiu bastante à união com a família austríaca, mas, em 1769, veio a proposta oficial de casamento. As diferenças entre os noivos não poderiam ser maiores. Segundo os relatos da época, Maria Antonieta tinha uma impecável pele branca, boca carnuda, cabelos louros e olhos azuis. Caminhava e dançava com elegância. Já Luís Augusto, um ano mais velho que ela, parecia ter crescido demais para a idade. Era desengonçado, absurdamente tímido e considerado um palerma pela corte francesa. Seu único traço aparente de nobreza eram os belos olhos azuis (mas, como ele não levava mesmo jeito para a perfeição, era levemente míope).
O casamento aconteceu em abril de 1770, numa igreja de Viena. E teve toda a cara de arranjo político, já que foi feito por procuração. No altar, Maximiliano, irmão da noiva, fez o papel do delfim. Logo após a cerimônia, um cortejo com 57 carruagens se pôs a caminho da França. Por exigência da nova pátria, ao chegar à fronteira com a França, Maria Antonieta foi obrigada a deixar para trás tudo o que tivesse alguma relação com a Áustria. Não apenas seu enxoval e suas damas de companhia, mas até as roupas que usava. Maria Antonieta despiu-se e recebeu um vestido dourado para continuar a viagem.
Em território francês, a jovem conheceu Luís XV, então com 60 anos. Depois foi a vez do noivo. Luís Augusto, que tivera pouquíssimo contato com mulheres e certamente era virgem, acabou dando apenas um beijo rápido no rosto de Maria Antonieta. Uma nova cerimônia de casamento foi celebrada em Versalhes, o subúrbio nos arredores de Paris onde residia a corte francesa. Sob os olhos atentos da nobreza, o casal se retirou para a cama. Ali aconteceu algo que iria se repetir durante anos: “Nada”, como escreveu o delfim no seu diário, na manhã seguinte.

Versalhes é uma festa

Não foi fácil para a menina de 14 anos se adaptar à nova vida na França. Claro que Maria Antonieta apreciava estar vivendo no palácio de Versalhes, o mais esplendoroso da Europa. Mas as complicadas regras de etiqueta da corte francesa a irritavam um bocado. Para piorar, a privacidade era praticamente inexistente – em tudo o que fazia, ela era observada pelos membros da corte. Além disso, por ter sido criada num ambiente quase puritano, Maria Antonieta não engolia o costume dos nobres franceses de ter amantes “oficiais”. Era o caso do próprio Luís XV, que, viúvo, levava às festas da realeza a ex-prostituta Madame du Barry.
O estranhamento da jovem com a nobreza francesa fez com que ela fosse apelidada, pejorativamente, de l·Autrichienne, “a Austríaca”. “A parte mais antiga da corte considerava Maria Antonieta uma arrivista sem nenhum senso da civilidade, do refinamento e da elegância francesa”, diz Caroline Weber. Por algum tempo, a princesa teve que suportar a má fama. Até que, em 1774, o rei morreu de varíola. Luís Augusto e Maria Antonieta viraram, assim, os soberanos da França. Num piscar de olhos, a rainha usou sua nova posição para criar uma vida de sonho. Dispensou boa parte das antigas damas de companhia, povoou a corte de gente jovem e bonita e ganhou do marido, agora chamado de Luís XVI, o charmoso palácio do Petit Trianon (que antes pertencera a Madame du Barry), em Versalhes. Maria Antonieta organizava corridas de cavalo e se divertia em passeios de carruagem a toda velocidade.
O que mais fascinava a rainha, entretanto, era o agito da noite parisiense (a cidade, então uma das maiores do mundo, tinha 600 mil habitantes). Além de freqüentar óperas e teatros, Maria Antonieta adorava participar de bailes a que as mulheres compareciam mascaradas. Assim, podia se misturar com plebeus sem ser reconhecida. Como Luís XVI adorava acordar cedo, ele não se incomodava em deixá-la ir se divertir sem ele. O rei, aliás, parecia satisfeito em fazer as vontades de sua esposa. Como ela gostava de jogar cartas, Luís XVI instalou um cassino particular em Versalhes. Na estréia da nova atração, a rainha jogou durante 36 horas seguidas. Perdeu uma boa quantia de dinheiro dos cofres da coroa. Nada comparável, claro, ao que ela gastava para aumentar sua coleção de diamantes.

O poder do glamour

Por trás desse mundo de diversão e festas, Maria Antonieta tinha que suportar muitas pressões. Os nobres que haviam sido excluídos do convívio com a rainha não paravam de caluniá-la. Segundo Caroline Weber, o jeito de Maria Antonieta reagir era manipular sua aparência. “Ela usava a moda como um instrumento político, como forma de aumentar ou sustentar sua autoridade em momentos em que ela parecia estar sob risco, como nos sete anos que se passaram antes que ela tivesse um filho”, diz. Por meio de novas roupas, sapatos e penteados, a rainha se impôs, colocando-se acima de qualquer mulher francesa.
“Foi uma atitude inédita para uma rainha”, afirma Caroline. “Antes, as soberanas francesas tinham de projetar uma imagem dócil, vivendo longe dos holofotes. Quem tentava se envolver em política e exibir seu poder por meio de roupas luxuosas eram as amantes dos reis.” A família real francesa sabia da influência que as amantes costumavam ter nos rumos do governo. Por causa disso, havia exigido, durante as negociações com a mãe de Maria Antonieta antes do casamento, que a futura rainha fosse sedutora o bastante para que o rei não encontrasse distração fora de casa. Deu certo. Fosse por causa da beleza de Maria Antonieta ou pela própria falta de apetite sexual, Luís XVI não dava suas escapadas. O problema é que ele tampouco deixava Maria Antonieta meter a colher na política, o que irritava profundamente Maria Teresa, que insistia que a filha tentasse transformar o monarca num fantoche a serviço de seus interesses.

A posição de Maria Antonieta na corte francesa melhorou bastante depois que ela e Luís XVI finalmente tiveram seu primeiro bebê. Em 1778, nasceu Maria Teresa, batizada em homenagem à avó (a imperatriz morreria dois anos depois). O tão esperado delfim, Luís José, veio em 1781. “Com o nascimento de um filho homem, Maria Antonieta assumia a posição tradicionalmente forte de qualquer rainha da França que tivesse produzido um delfim”, conta a historiadora britânica Antonia Fraser, autora do livro Marie Antoinette – The Journey (“Maria Antonieta – a jornada”, inédito no Brasil), que serviu de inspiração para o filme de Sofia Coppola sobre a personagem, que deve estrear por aqui em março.
Depois do nascimento do herdeiro, Maria Antonieta ganhou coragem para desafiar ainda mais os costumes de Versalhes. Quando teve os últimos dois filhos, um menino e uma menina, ela se recusou a dar à luz em público, quebrando a tradição da corte francesa. A essa altura, Maria Antonieta parecia viciada em flertar com a impopularidade. Flertar, aliás, tinha se tornado uma rotina na vida dela desde o fim dos anos 1770, quando conhecera o belíssimo conde sueco Axel Fersen. Se não existem provas de que eles chegaram a ter relações sexuais, há poucas dúvidas de que os dois se amavam: os diários de Fersen, em linguagem cifrada, falam de uma “Josefina”, que certamente era Maria Antonieta.

Tragédia anunciada

Entre 1779 e 1782, Maria Antonieta e o conde Fersen tiveram que se separar. Ele estava na América, lutando ao lado das tropas francesas pela independência dos Estados Unidos. A saudade do amado foi o maior impacto que a guerra teve sobre o cotidiano da rainha. Nessa época, ela transformou parte do Petit Trianon numa réplica das vilas camponesas da França, com casinhas simples, vacas e ovelhas. Para completar o faz-de-conta, Maria Antonieta passou a se fantasiar de pastora.
Longe de Versalhes, os camponeses de verdade e o resto do povo francês viviam um período difícil. A economia cambaleava, com o governo atolado em dívidas. Os gastos com a guerra na América, que acabou em 1783, só pioraram o cenário. Maria Antonieta ganhou, então, um novo apelido: “Madame Déficit”. Os gastos da rainha tinham um impacto mínimo no total das despesas da nação, é verdade. Mas seus hábitos extravagantes se tornaram o principal alvo da revolta popular contra tudo o que havia de errado no governo.

A péssima colheita de 1788 deixou os camponeses famintos e desesperados. Enquanto isso, a classe média (a burguesia) reclamava dos privilégios dos nobres. Debaixo de tantas críticas, Luís XVI tomou a pior decisão de seu reinado. Convocou, para maio de 1789, uma reunião dos chamados Estados Gerais: uma assembléia reunindo representantes do clero, da nobreza e do povo. Em vez de apoiar as tímidas reformas que o rei pretendia fazer, os Estados Gerais logo foram dominados pelos não-nobres. Em 9 de julho, eles conseguiram criar a Assembléia Nacional Constituinte. Enquanto os camponeses de toda a França se revoltavam contra seus senhores e o povo de Paris destruía a Bastilha (prisão-símbolo do autoritarismo do rei), a assembléia abolia o regime feudal e os privilégios da nobreza.
Em outubro, o povo rebelado invadiu Versalhes. Durante duas noites de agonia, Luís XVI e Maria Antonieta ficaram sitiados com os filhos, vários nobres e uns poucos guardas. Aos gritos, a multidão exigiu a presença da rainha no balcão do palácio. Quando ela apareceu, sua figura altiva acalmou um pouco os ânimos. Mas a família real acabou aceitando as reivindicações do povo: aceitou abandonar a “ilha da fantasia” de Versalhes e se estabelecer em Paris.

A Assembléia Nacional exigiu então que o rei governasse com uma câmara de representantes do povo. Mas Luís XVI não aceitava dividir o poder. Em junho de 1791, ele e a rainha tentaram fugir da França, mas foram pegos e levados de volta a Paris. Sem alternativa, passaram a esperar ajuda da nobreza de outros países. Maria Antonieta manobrou nos bastidores para que seus parentes atacassem a França. A Assembléia Nacional acabou facilitando: como queria expandir a revolução pela Europa, ela deu apoio para que Luís XVI declarasse guerra contra a Áustria. Auxiliadas pela Prússia (hoje parte da Alemanha), as forças inimigas invadiram o país e ameaçaram marchar sobre Paris se a família real sofresse algo. O fato foi visto pelo povo como sinal de que Luís XVI era um traidor.
Em 20 de setembro de 1792, as forças francesas detiveram os invasores. No dia seguinte, a república foi proclamada e a família real foi presa. O ódio contra a nobreza atingiu o ápice. Uma das melhores amigas da rainha, a princesa de Lamballe, foi linchada. Enfiada na ponta de um pedaço de pau, sua cabeça foi levada até a janela da cela de Maria Antonieta, que entrou em pânico e desmaiou.

Em janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotinado. Isolada na prisão, Maria Antonieta passou a vestir apenas preto. Foi levada a julgamento, acusada até de incesto com o filho mais novo. O processo não trouxe qualquer evidência concreta contra Maria Antonieta. Quando o júri exigiu uma explicação sobre o incesto, a ex-rainha gritou: “Se não respondi, foi porque a natureza se recusa a responder tal acusação feita a uma mãe. Apelo às mães aqui presentes!” Foi o único momento em que o público protestou em sua defesa. Condenada à morte, Maria Antonieta viveu um papel que não combinava com ela, o de vítima. Em 16 de outubro de 1793, foi guilhotinada em praça pública.


Campanha frustrada de Napoleão em direção à Rússia

Há 201 anos, Napoleão foi protagonista de um dos maiores desastres da história militar. Viu seu exército ser dizimado na Rússia e perdeu a fama de invencível. A campanha foi o primeiro passo rumo ao fracasso da França napoleônica.

Era um belo dia de sol quando os soldados da França cruzaram o rio Neman, na atual fronteira da Polônia com a Lituânia, aos gritos de "Vive l'Empereur!", na confiança de serem o maior e mais temido exército que o mundo havia visto. Estavam ali para dar uma surra, não para guerrear - o inimigo só tinha um terço de suas forças e estava dividido. E, o mais importante, não tinha Napoleão como líder. Eram 690 mil soldados de várias nacionalidades, dos quais só 300 mil eram franceses. Os demais eram poloneses, austríacos, italianos, prussianos e até 2 mil portugueses, recrutados entre simpatizantes do imperador. Como era comum na época, seguia com eles um cortejo de comerciantes, prostitutas, médicos e até esposas e filhos dos militares. Nem soldados, nem civis, nem Napoleão poderiam imaginar àquela hora, mas apenas um em cada sete deles voltaria vivo daquela campanha.


A Rússia não é para principiantes e isso não era segredo para Napoleão e seus soldados. Pouco mais de um século antes, em 1709, o rei Carlos 12, da Suécia, havia perdido seu exército na Rússia de frio e fome. Por isso, o exército francês invadiu a Rússia no auge do verão, em 24 de junho de 1812. E o verão foi seu primeiro inimigo. As temperaturas frequentemente superam os 30 ºC, enquanto as noites duram apenas 3 horas - foi "aproveitando" esse sol todo que Napoleão fez seus soldados marcharem 112 km nos dois primeiros dias da campanha. A essa velocidade, as carroças de suprimento ficaram para trás. Desidratada pela caminhada e sem alimentos e água, a tropa viu-se forçada a beber dos riachos pantanosos da região, pegando diarreia. As primeiras vítimas tombaram ao lado das fontes de água - e os soldados que vinham atrás também ficaram doentes.

A pressa era justificada pela estratégia. "Napoleão não foi à Rússia para conquistar", diz o historiador César Machado Domingues, editor da Revista Brasileira de História Militar. Ele queria simplesmente aniquilar o exército russo e conseguir uma aliança forçada com o czar Alexandre 1º. O primeiro alvo era a cidade de Vilna, atual capital da Lituânia, onde estava o comando das tropas russas, inclusive o czar. Napoleão entrou na cidade em 28 de junho, mas o comando russo havia se mudado. Não só isso. Também haviam esvaziado armazéns e paióis de pólvora e queimado plantações nos arredores.

Os franceses esperavam fazer o mesmo que em suas guerras anteriores: tomar alimentos das cidades e fazendas pelo caminho. O que sobrava da destruição russa só era aproveitado pelos soldados da frente da coluna - quem vinha atrás passava fome. Um comércio clandestino e gangues de ladrões passaram a agir. Os cavalos, que morriam às centenas, se tornaram o prato principal.

A campanha prosseguiu assim - os russos regredindo e queimando tudo, os franceses sangrando lentamente de doenças, fome, sede, ataques de guerrilha e deserção massiva. "No caminho para Moscou, ainda no verão, os franceses perdiam em média 6 mil soldados por dia", escreveu o médico e historiador Achilles Rose (1839-1916) em seu livro A Campanha de Napoleão na Rússia, Anno 1812.

Após mais uma conquista estéril na cidade de Smolensk, em 18 de agosto, Napoleão decidiu rumar para Moscou. Mas isso os russos não aceitariam e, enfim, Napoleão teve sua batalha. A mais sangrenta de todas as guerras napoleônicas, a Batalha de Borodino, em 7 de setembro - dos 250 mil participantes, 80 mil morreram. Os russos recuaram mais uma vez, mas não foram aniquilados. Em 14 de setembro, Moscou pertencia a Napoleão. "Napoleão deve ter imaginado que havia vencido", diz César Domingues. Ele sentou-se no trono do Kremlin e esperou a rendição do czar. No mesmo dia, começou um incêndio, que os russos jamais admitiram ter causado, que destruiu 75% da cidade em 4 dias.

O tempo ia esfriando, o Exército russo, se recompondo, e o czar não ofereceu paz. Em 18 de outubro, quando os franceses iniciaram a retirada, a temperatura estava por volta de 0 ºC. O plano era voltar pelo sul, mas os russos cortaram o caminho e os militares se viram forçados a voltar por onde vieram, começando pelo campo de Borodino, crivado de homens e cavalos em decomposição da batalha de um mês e meio antes.

Se algo havia sobrado da destruição causada pelos russos, já havia sido consumido pelos franceses na ida. Diante de um frio que chegaria a -40 ºC, ninguém tinha roupas de frio, exceto as roubadas de Moscou - inclusive chapéus, sapatos, mantos e echarpes femininas. Os cavalos não tinham ferraduras adaptadas ao gelo, como as dos russos - escorregavam e quebravam as patas ou simplesmente não conseguiam puxar as cargas.

A tropa se converteu em um bando de desesperados. Cavalos passaram a ser atacados e a carne era comida crua. Em seu livro de memórias, o sargento Adrien Bourgogne relata que um carro-ambulância teve seus cavalos devorados à noite pela tropa. De manhã, os feridos foram largados no caminho. Os soldados também tiravam nacos de carne de animais ainda vivos - amortecidos pelo frio, eles não reagiam. Bourgogne conta que um bando de soldados havia se fechado em um celeiro para evitar o frio. Eles se acumularam na porta para evitar que mais gente entupisse o lugar. Durante a noite, o celeiro pegou fogo. Quando o incêndio acabou, alguns soldados tomaram coragem de avançar para os corpos dos colegas, providencialmente "assados". O soldado alemão Jakob Walters (1788-1864) escreveu que viu um soldado que se aliviava de diarreia à beira da estrada ter suas calças roubadas - a vítima morreu de frio horas depois.

Os franceses fugiam em desespero, mas os russos não haviam se esquecido deles. Em 26 de novembro, as tropas napoleônicas tiveram de atravessar o rio Berezina (na atual Bielorrússia). Os russos descobriram sua posição e atacaram no dia 29, com 60 mil homens, contra 40 mil soldados divididos entre as duas margens. Os franceses conseguiram escapar com seu imperador, destruindo as pontes improvisadas que haviam feito - mas ainda havia muitos deles do outro lado. Entre 25 mil e 45 mil civis e militares morreram ali - 10 mil deles empurrados pelos cossacos para dentro do rio congelado.

Em 14 de dezembro, o esfarrapado exército de Napoleão chegou à Polônia. Sua tropa principal tinha 22 mil soldados, dos 690 mil que entraram na Rússia. O total de sobreviventes é cerca de 100 mil, contando as outras colunas do exército. Pessoas, armas e cavalos podiam ser substituídos, mas o dano irrecuperável foi à reputação de invencível de Napoleão, que acabou deposto e exilado na ilha de Elba (Itália) em 1814.

Não foi apenas Napoleão que não aprendeu com seus antecessores. Em 22 de junho de 1941, Hitler invadiu a União Soviética, também esperando uma campanha fulminante que acabasse antes do inverno. Os nazistas estavam às portas de Moscou em dezembro, mas então veio o inverno, matando 150 mil alemães em poucos dias. Em homenagem aos serviços prestados, os russos deram uma promoção a seu inverno. Lá ele é conhecido como General Moroz - o temido General Inverno.


Bárbaros pelo czar


Os cossacos não costumam entrar na conta do efetivo do Exército russo, mas como adicionais (costuma-se afirmar algo como "100 mil soldados e 20 mil cossacos"). Na verdade, eles nem são exatamente russos. Cossacos são sociedades independentes, democráticas e militaristas, originalmente de povos eslavos, que depois passaram a aceitar aventureiros de qualquer país - particularmente quem falasse línguas, soubesse fazer contas ou simplesmente fosse alfabetizado, talentos raros entre os nascidos entre eles. Os cossacos não eram súditos, mas aliados do czar - e se voltaram contra os russos em algumas ocasiões, como a Revolta de Pugachev, de 1774. Suas tropas tinham sua própria hierarquia e generais. Mas elas eram um tanto indisciplinadas, por isso os russos preferiam usá-los como forma de bagunçar e aterrorizar as linhas inimigas, e não como força de choque ou cavalaria regular. Os cossacos foram integrados à sociedade soviética à força por Josef Stalin, na década de 30, mas os descendentes ainda se orgulham do passado independente e aventureiro.