segunda-feira, 16 de setembro de 2013

(Carlota Joaquina) "A Incompreendida"

Da Série Carlota Joaquina.



A incompreendida

 Carlota Joaquina de Bourbon e Bragança, mulher de Dom João VI, continua uma personagem pouco conhecida da nossa história. A exposição na mídia ajudou muito a popularizá-la, mas pouquíssimo compreendê-la. Nas duas produções, os autores reproduzem a imagem da princesa do Brasil como uma mulher muito feia, ambiciosa, libidinosa, adúltera e que, sobretudo, odiava o país. Mas volumosos conjuntos de cartas de Carlota Joaquina, guardados no arquivo histórico do Museu Imperial em Petrópolis (RJ) e nos arquivos portugueses e espanhóis, contam uma versão bem diferente.

Como parte de um acordo entre as coroas ibéricas, a espanhola Carlota foi enviada aos 10 anos a Lisboa para casar com o infante português Dom João. Com o marido introvertido e depressivo ausente do centro de poder, recolhido nos palácios de Mafra e Vila Viçosa, Carlota passou a ter um papel político relevante na adolescência. Defensora do absolutismo, numa época em que crescia a influência dos liberais ingleses na corte, ela negociou o apoio da França e da Espanha para assumir o poder em Portugal.

Mas,  o agravamento da crise política na Europa e a iminente invasão francesa – que obrigou a família real fugir de Portugal – cancelaram suas ambições políticas. Em 1807, a viagem para o Brasil significou para Carlota o exílio. Longe dos pais, dos amigos e partidários políticos, ela não via mesmo muitos motivos para gostar do Brasil.

Vivendo no Rio de Janeiro, Carlota recebeu a notícia da invasão da Espanha pelas tropas de Napoleão e a prisão de toda a sua família. Em 1808, com apoio do almirante inglês Sidney Smith e membros da elite criolla de Buenos Aires, Carlota pleiteia a regência da monarquia espanhola, para liderar a oposição à invasão francesa e governar o império espanhol, estabelecendo a sede da monarquia em Buenos Aires, capital do vice-reino do Rio da Prata
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Em geral, os historiadores consideram essa interferência política fruto de sua ambição pessoal e do desejo desenfreado de poder. Entretanto, a correspondência entre ela e os intelectuais portenhos, que se tornaram defensores do “carlotismo”, mostra o contrário. Em 1809, Saturnino Rodrigues Peña, escritor e político portenho escreveu: “A senhora dona Carlota, princesa de Portugal e do Brasil e infanta da Espanha, tem uma educação ilustrada e os sentimentos mais heróicos. É impossível ouvir falar dela sem amá-la; não possui uma só idéia que não seja generosa: em uma palavra parece prodigiosa a vinda da digna princesa, sua educação, suas intenções e demais extraordinárias circunstancias que a adornam; em cuja virtude não duvido, nem V.S. deve duvidar que essa seja a heroína que necessitamos.

As cartas mostram que a relação com o marido, outra fonte de polêmicas, também tinha momentos de carinho. Em bilhete enviado à mulher, em 1813, dom João se expressa de forma afetuosa: “Meu amor, estimei infinito a tua carta por ter a certeza de que estás boa e nossos filhos. Eu passo bem e nossos filhos e neto. Quanto ao que me dizes a respeito do furto dos pretos, aprovo o que fizeste, e adeus meu amor.”

Por que, então, a historiografia brasileira criou essa caricatura menor para representar Carlota Joaquina? Ao invadir a esfera pública, espaço proibido ao sexo feminino na época, Carlota perdeu todos os predicados inerentes às mulheres, como, feminilidade, beleza, recato e bondade. Eis o motivo pelo qual muitos artistas ao representá-la, fiéis a esses estereótipos, retratam feições marcadamente masculinas.


Além disso, há o componente ideológico. No século 19, as interpretações do passado tornaram-se ferramentas políticas na criação das identidades nacionais nos países que surgiam. No Brasil, não foi diferente. Carlota Joaquina, uma rainha portuguesa que manteve a identidade espanhola, que foi contra a vinda da família real para o Brasil, que declarou sua alegria com a volta a Portugal, que se recusou a jurar a Constituição portuguesa e defendeu o absolutismo até o fim, certamente não servia para ocupar o pódio dos personagens dignos da memória nacional brasileira.

quarta-feira, 11 de setembro de 2013

Ditaduras latinas

O golpe chileno na vida de três vítimas de Pinochet

O golpe que derrubou o governo socialista de Salvador Allende completa 40 anos sem trazer respostas para a morte do poeta Pablo Neruda, do músico Víctor Jara e do general Carlos Prats.

As primeiras notícias de que algo grande acontecia vieram antes de o Sol nascer. Falava-se que a Marinha havia se insurgido em Valparaíso, mas que o Exército seguia leal ao presidente. A verdade é que o dia 11 de setembro de 1973 começou sem que se soubesse como tudo ia acabar - uma dúvida que não existia mais na hora do almoço. O levante era da totalidade das Forças Armadas, encabeçado pelo general Augusto Pinochet. Sua subida ao poder teve momentos violentos, com bombardeio ao palácio do governo e o suicídio do presidente do Chile Salvador Allende.

"Depois daquele dia, quando você saía na rua, encontrava um país diferente. As pessoas estavam silenciosas, sem saber em quem confiar, pois o amigo de ontem podia se revelar um espião", diz o poeta Jorge Montealegre. Ele tinha 18 anos quando Allende foi deposto. Duas semanas após o golpe, Montealegre tornou-se um dos milhares de chilenos enviados à prisão política. A repressão torturou mais de 40 mil pessoas, deixando um rastro de pelo menos 3 065 desaparecidos e mortos já reconhecidos pelas investigações realizadas desde os anos 90.


Da esquerda para a direita: o poeta Pablo Neruda, o músico Víctor Jara e o general Carlos Prats.

Muitos pereceram em condições misteriosas. Alguns personagens mortos eram muito famosos: o poeta Pablo Neruda, o músico Víctor Jara e o general Carlos Prats. Cada um deles havia dado sua contribuição para Allende e os três morreram pouco tempo após o golpe. Não se sabe o que matou Neruda. Não se sabe quem matou Jara. Os familiares de Prats até conhecem o culpado, mas convivem com a impunidade dos responsáveis. Seus casos continuam a ser investigados - parte do triste fim de uma das democracias mais sólidas da América do Sul.

Oásis democrático

Desde 1932, o Chile realizava eleições sequenciais - contrastando com os instáveis vizinhos com seus caudilhos - e costumava atrair asilados a Santiago, incluindo brasileiros, como Fernando Henrique Cardoso. Em setembro de 1970, os chilenos testaram os limites de seu sistema eleitoral: em plena Guerra Fria, o médico e senador socialista Salvador Allende venceu o pleito com um programa que buscava uma transição inédita ao socialismo - sem pegar em armas e usando leis já existentes para fazer as reformas. Allende tornou-se o primeiro presidente marxista eleito no mundo, à frente da Unidade Popular (UP), coligação liderada pelos socialistas e comunistas. Temendo uma nova Cuba, os EUA não tardaram a agir. A alternativa mais rápida era dar suporte a um golpe. A UP tinha um cenário interno hostil. Numa briga de três candidatos, a vitória veio sem maioria absoluta, com 36,6% do eleitorado. Sem segundo turno, o resultado precisava ser confirmado pelo Legislativo. Às vésperas da reunião dos congressistas, um grupo radical de direita assassinou o comandante do Exército, general René Schneider, que havia prometido respeitar o resultado das urnas. O atentado não impediu a posse, mas sinalizou o que viria.

Henry Kissinger, secretário de Estado norte-americano, perguntou: "Por que temos que ver um país virar marxista pela irresponsabilidade de seu povo?" Chu En-Lai, o primeiro-ministro chinês, alertou: "Cuidado, vocês estão indo muito rápido". As frases ajudam a entender o processo que levou à derrubada de Allende na metade do seu mandato de seis anos: por um lado, os boicotes estrangeiros; por outro, os passos grandes demais nas reformas econômicas.

A gestão da UP começou em novembro de 1970 e, antes de o ano acabar, já havia expropriado sua primeira fábrica. Depois, acelerou-se a reforma agrária. Nos dois casos foi usada a legislação existente, mas com um rigor nunca visto. Até Fidel Castro desembarcou no Chile, em sua primeira visita a outro país do continente após Cuba se declarar socialista. A maior vitória do governo veio em julho de 1971: mesmo dominado pela oposição, o Congresso aprovou por unanimidade a estatização das minas de cobre, até ali em mãos de empresas norte-americanas.

Logo as reformas saíram do controle. Sabendo que o governo não os reprimiria, camponeses sem-terra ocuparam fazendas que não se enquadravam na lei de reforma agrária, e operários fizeram o mesmo em fábricas cuja expropriação não se justificava legalmente. "Essa revolução vinda de baixo com frequência coincidia com, ou complementava, mas cada vez mais divergia da revolução legalista e modulada vinda de cima", escreveu o historiador norte-americano Peter Winn em A Revolução Chilena.

Além disso, não havia reservas suficientes para sustentar tantas estatizações. O problema se agravou quando os norte-americanos fizeram lobby para derrubar o valor do cobre e seus bancos cortaram o crédito ao Chile. O governo imprimiu mais dinheiro. Como se não bastasse, uma greve de caminhoneiros piorou a escassez de alimentos e a inflação. A partir de abril de 1973, os preços subiam, em média, mais de 1% ao dia.

A carestia pressionava mais o bolso da classe média. Nas periferias, o governo conseguia distribuir alimentos a preço tabelado. Sem a classe média, a UP perdeu apoio de um setor volátil e estratégico para se viabilizar politicamente. Até os partidos moderados de oposição fecharam os canais de diá-logo. Querendo insuflar os militares, grupos de ultradireita deram início a atentados terroristas. Estava pavimentado o caminho para o golpe.

No final de 1972, com o país já em crise, um episódio entrou para a história do Chile e reuniu três figuras marcantes. No Estádio Nacional, que na ditadura viraria campo de prisioneiros, Pablo Neruda foi recebido em triunfo em sua primeira aparição pública após ganhar o Nobel de Literatura. A organização do evento esteve a cargo de Víctor Jara. Quem discursou em nome do governo foi o general Carlos Prats. Neruda regressava ao Chile após dois anos como embaixador na França. Apesar de ser mais conhecido pela literatura, era um veterano na diplomacia e na política: em 1939, havia sido responsável direto por trazer a Santiago mais de 2 mil refugiados da Guerra Civil Espanhola. Na década seguinte, virou senador pelo Partido Comunista.

Esse passado mudou o perfil das arquibancadas naquela tarde de dezembro. Embora Neruda estivesse acima dos partidos, o público visto no estádio foi menor que o esperado. Na época, a discórdia aparecia até dentro da UP: Allende e os comunistas pediam calma e buscavam diálogo com a oposição, mas os socialistas defendiam a necessidade de acelerar o processo, mesmo se isso atropelasse as leis. Neruda fez uma leitura acurada do momento. Citando o caso espanhol, discursou sobre o horror de uma guerra civil, que temia para seu país. Enquanto falava, era observado atentamente por Prats, que pouco antes havia feito seu pronunciamento.

O general e o poeta

Allende não estava lá. O evento coincidiu com sua visita à ONU, onde denunciou os boicotes sofridos pelo Chile: "Somos vítimas de ações quase imperceptíveis, disfarçadas com frases e declarações que exaltam o respeito à soberania e à dignidade de nosso país. Mas nós conhecemos na própria carne a enorme distância que há entre essas declarações e a realidade".

Carlos Prats González assumira o comando do Exército após o atentado contra René Schneider. Assim como o antecessor, pregava a defesa do governo democrático: "As Forças Armadas não são uma opção ao poder enquanto existir um regime legal", afirmava. Prats tornou-se tão importante para repelir tendências golpistas que, durante a greve dos caminhoneiros de outubro de 1972, foi nomeado ministro do Interior - cargo, na prática, equivalente ao de vice-presidente.

O general cumpria essa função no final do ano, quando Allende viajou e Neruda voltou ao Chile. A presença de Prats tranquilizava os chilenos, em especial os da UP, mas no Estádio Nacional ainda houve lugar para o medo. Entre as apresentações previstas para a tarde estava a execução da 1812 Overture, composição de Tchaikovsky cuja partitura original inclui tiros de canhão. Nos camarins, os artistas que não conheciam esse detalhe se assustaram com os disparos. Anos depois, o bailarino Patricio Bunster afirmou: "Todos começaram a gritar e chorar. Acreditávamos que vinha o golpe".

O Músico

Os detalhes do evento ficaram a cargo de Víctor Jara. Filho de camponeses, havia se mudado para Santiago ainda menino e, na juventude, entrou na faculdade de teatro. Jara começou a tocar violão e cantar, atividade que ofuscou sua carreira como diretor: nos anos 60 já era um dos cantores mais famosos do Chile - e o mais polêmico. Comunista, esteve na comissão que criou o hino de campanha de Allende.

Em 11 de setembro de 1973, Jara estava na Universidade Técnica do Estado (UTE), onde trabalhava. Allende visitaria o campus naquela manhã e pretendia convocar um plebiscito para decidir se continuava ou não seu mandato. A notícia antecipou o levante militar - o golpe seria menos aceitável pela opinião pública depois do anúncio de Allende. Foi das janelas da UTE que Jara soube que não haveria plebiscito: viu os caças da Força Aérea dispararem mísseis contra o palácio de La Moneda, a sede do governo.

No fim de agosto, apenas 18 dias antes, Prats havia renunciado ao comando do Exército - seu sucessor foi Augusto Pinochet, cuja lealdade nunca havia sido questionada, embora já conspirasse em segredo. No dia 11, a Marinha se insurgiu antes das 6h da amanhã, e o mito de um Exército leal seguiu até perto das 9h, quando as rádios emitiram um comunicado exigindo a renúncia do presidente. Allende recusou-se a renunciar. Em seu último pronunciamento pelo rádio, declarou-se traído e pediu que os chilenos não arriscassem a vida tentando resistir ao golpe. Não querendo cair vivo nas mãos dos militares, suicidou-se após ordenar a rendição aos seus colegas na defesa do palácio. Com a cidade sitiada, a UTE permaneceu sob cerco do Exército, sem que ninguém pudesse sair. Na manhã seguinte, quem se encontrava no campus foi preso e levado a um ginásio próximo. Jara estava entre eles.

A morte de Jara virou lenda. Na versão mais conhecida, ele teria sido fuzilado enquanto cantava o hino da UP, no centro da quadra. O músico na verdade foi levado aos vestiários, longe dos outros prisioneiros, e não voltou vivo. Seu corpo apareceu na manhã de 16 de setembro, com 44 furos de bala. Não seria a única execução sumária da ditadura, mas o fato de acontecer contra um músico assustou a todos. "A quem ocorreria a ideia de matar um cantor? Isso só servia para demonstrar até onde a ditadura estava disposta a ir", diz Eduardo Carrasco, do Quilapayún, banda que tocou com Jara nos anos 60.

Mistérios

Até hoje, as investigações não conseguiram determinar quem deu a ordem de executar Jara. Só em dezembro de 2012, 40 anos depois, a Justiça exigiu a prisão preventiva de oito oficiais envolvidos no crime. Ninguém foi condenado e o inquérito segue aberto. Neruda morreu no dia 23, em um hospital de Santiago. A notícia da morte apareceu no jornal El Mercurio ao lado de uma foto de soldados queimando livros "subversivos". O relato oficial falava em complicações de um câncer na próstata. Há pouco tempo, voltou à tona a hipótese de envenenamento - segundo seu chofer, Manuel Araya, o poeta teria piorado após receber uma injeção. Em abril de 2013, seu corpo foi exumado. As conclusões ainda não foram apresentadas.

Prats morreu em setembro de 1974, num atentado a bomba em Buenos Aires, onde se exilou. A emboscada foi armada pelo ex-agente da CIA Michael Townley, que depois mataria, em Washington, o ex-ministro de Defesa de Allende, Orlando Letelier. Ficou menos de seis anos preso nos EUA. Por contribuir com as investigações, nunca foi extraditado à Argentina para ser julgado pela morte de Prats.

Os acontecimentos de 11 de setembro de 1973

02:30 - Allende encerra reunião com assessores, em que se discutiu seu pronunciamento do dia seguinte. Está marcado para a manhã do dia 11 o anúncio de um plebiscito pela continuidade de seu governo - fato que fez os militares apressarem o golpe, previsto só para o dia 14.

03:00 - Uma rádio universitária, ligada ao governo, é invadida e destruída por militares para não transmitir mensagens contrárias ao golpe na manhã seguinte.

05:30 - Raúl Montero, comandante da Marinha que apoiava o governo, é mantido em prisão domiciliar pelos golpistas. O almirante Toribio Merino se proclama novo chefe da Armada. Começa o levante em Valparaíso.

06:15 - Allende é acordado por um telefonema informando dos fatos. Tenta contato com os três comandantes das Forças Armadas, sem sucesso.

07:35 - O presidente chega ao palácio de La Moneda. Quase na mesma hora, Augusto Pinochet desembarca no quartel de telecomunicações do Exército, de onde coordenará as ações do golpe.

07:55 - Allende faz seu primeiro pronunciamento do dia, pela Rádio Corporación: "Até o momento, não houve nenhum movimento anormal de tropas em Santiago", diz, baseado nas informações que possui. O presidente ainda tem a esperança de que o levante esteja restrito à Marinha.

08:15 - No rádio, Allende manifesta confiança nos "soldados da Pátria". Acreditando na lealdade de Pinochet, comenta fora do ar sobre o general: "Pobre Augusto, deve estar preso".

08:30 - Rádios de oposição transmitem o comunicado da Junta Militar, assinado por Pinochet e outros comandantes, contra a "gravíssima crise econômica, social e moral que está destruindo o país".

08:45 - Allende fala pela terceira vez na Rádio Corporación. Já sabendo que o golpe é insuperável, afirma: "Só me crivando de balas poderão impedir a vontade que é fazer cumprir o programa do povo".

09:05 - Um avião é oferecido para tirar Allende do país. Ele recusa. Em 1985, vaza a gravação das conversas de Pinochet com os comandantes que sinaliza que a promessa podia ser uma armadilha: "Está mantida a oferta... e o avião cai durante o voo".

09:10 - Allende fala pela última vez ao povo do Chile. As torres da Rádio Corporación já haviam sido bombardeadas pela Força Aérea e o áudio vem pela Rádio Magallanes. Sua voz está tranquila, mas também tem tom de despedida. O presidente pede que seus correligionários não arrisquem a vida nas ruas e garante: "Não vou renunciar. Pagarei com a minha vida a lealdade do povo".

09:30 - Em novo telefonema para oferecer um avião a Allende, ouve-se a voz do almirante Patricio Carvajal: "Temos que matá-los como ratos. Que não sobre nenhum rastro deles, em especial de Allende".

10:00 - O palácio de La Moneda é cercado por tanques de guerra. Vem o ultimato: o palácio deve ser evacuado até às 11h ou sofrerá bombardeio.

10:10 - Allende reúne os colaboradores no Salão Toesca e pede que não haja sacrifícios inúteis: ordena a retirada das mulheres e dos homens que não saibam usar armas.

11:20 - Em outro ponto de Santiago, a residência presidencial é bombardeada. Lá estava a primeira-dama Hortensia Bussi, que consegue escapar.

11:30 - A Junta Militar decreta estado de sítio.

11:52 - Com quase uma hora de atraso, começa o bombardeio de La Moneda. São disparadas ao menos 79 bombas e 57 mil tiros de fuzil.

12:15 - O bombardeio é interrompido. Durante o ataque, o jornalista Augusto Olivares, diretor da televisão estatal, comete suicídio. É a primeira morte no palácio.

12:50 - Reunidos dentro do palácio, os defensores discutem o que fazer. Decide-se enviar três homens para negociar os termos da rendição.

13:30 - Allende ordena que os demais defensores do palácio saiam pela porta que dá na Rua Morandé. Diz que será o último da fila. Enquanto os outros deixam La Moneda, porém, o presidente se retira para o Salão da Independência. Ali, usando um AK-47 que havia recebido de presente do presidente cubano Fidel Castro, Allende se suicida.

Cerca de 14h - Os militares anunciam que tomaram o palácio. Dos 56 prisioneiros, 24 sofreriam execuções sumárias ou desapareceriam nos dias seguintes ao golpe militar.


LIVRO

A Revolução Chilena, Peter Winn, Editora da Unesp, 2010.

"Muitas vozes"

"Muitas vozes" -  Análise da obra de Ferreira Gullar


 Esse livro representa uma ruptura temática dentro da biografia do escritor, diferenciando-se de grandes obras anteriores tais como "A Luta Corporal" (1954) e "Poema Sujo" (1976). Gullar sempre buscou novos caminhos para a poesia brasileira desde seus primeiros livros, tendo aberto espaço para a poesia concreta no país. Seu segundo trabalho, "A luta corporal" (1954), causou grande impacto no meio intelectual brasileiro por ter uma proposta gráfica muito inovadora para a época. Mais tarde o poeta iria romper com o concretismo e ajudar a criar o movimento neoconcretista, o qual também deixou de lado por volta da década de 1960. Assim, através de experiências diversas com a linguagem e o fazer poético, Gullar consegue firmar-se como um poeta de vanguarda dentro da literatura nacional.

Já em "Muitas Vozes" podemos ver uma poética mais madura. Nesta obra faz-se muito presente reflexões sobre a vida, a morte, memórias da infância, o silêncio e outros temas. Conforme o próprio escritor comentou, este é um livro em que a fúria presente em outras obras suas aparece mais amenizada e o tom geral do livro é de reflexão. O tema da morte, muito frequente no livro, pode ser reflexo das perdas enfrentadas pelo autor durante a década de 1990 – seu filho e sua primeira esposa haviam falecido nessa época. Porém, a morte não é vista com medo ou horror, mas sim como objeto de reflexão. Em contraste ao sentimento de dor e perda que o tema da morte traz, vê-se também a celebração da vida e do amor – Gullar havia encontrado um novo amor em sua segunda esposa, a poetisa Cláudia Ahimsa.

"Muitas Vozes" reúne  54 poemas divididos em quatro partes, sendo que a primeira não recebe nenhum título e as outras três são “Ao rés da fala”, “Poemas recentes” e “Poemas resgatados”. Ao contrário das outras partes, “Ao rés da fala” surpreende pelo ineditismo de alguns de seus temas. Nesta parte, Gullar trata de fatos marcantes em sua vida e chega a dedicar poemas a familiares seus, algo que ele jamais havia feito até então. Estão em “Ao rés da fala”, por exemplo, poemas que tratam de seu exílio no Chile e da morte de sua primeira esposa.

Por fim, convém ressaltar que após anos de experimentação literária e busca por novas formas de fazer poesia, Gullar volta a realizar em "Muitas Vozes" poemas metrificados e rimados – como pode-se notar mais fortemente na terceira parte do livro, “Poemas recentes”. Em seus livros anteriores, a maior preocupação era com a subversão da linguagem, buscando através da escrita “dizer o indizível”, como definiu o próprio escritor, e trazer em forma de poema a própria vida.

Já em "Muitas Vozes" a preocupação central de Ferreira Gullar parece ser a própria palavra e em diversos poemas ele apenas “escuta”, “observa” e “reflete” a vida. Assim, o título do livro pode ser compreendido como a reunião das “muitas vozes” que possuem a poesia de Gullar: as experiências com a poesia formal, o concretismo e neoconcretismo, as temáticas da morte, infância, vida e diversos outros aspectos da poesia do escritor estão todos presentes em "Muitas Vozes".

Poemas representativos
“Queda de Allende”
Nesse poema composto em três partes, Gullar volta a refletir sobre suas experiências no Chile. Na primeira parte do poema, o eu-lírico conta sobre o leite que comprou sem saber que nem chegaria a bebe-lo. Já na segunda parte ele fala que mesmo estando à caminho do movimento de resistência ao golpe político, entra na fila para comprar cigarro;. Por fim, na terceira parte o eu-lírico conta sobre os jovens que jogam futebol nos intervalos do tiroteio.

Ao contrário do sentimento de coragem ao defender o presidente Allende que se encontra no poema “Dois poemas chilenos” (do livro "Dentro da noite veloz"), aqui o eu-lírico se preocupa em garantir o sustento do dia-a-dia e observa os jovens que continuam sua vida sem se importar com os acontecimentos que os cercam. Assim, quem fala no poema é o homem comum, despido de qualquer ideologia ou mitificação política.

“Não-coisa”
Esse poema trata de um tema muito recorrente na poética de Ferreira Gullar que é a preocupação com o fazer-poético. Assim, esse é um poema metalinguístico, ou seja, que trata sobre o próprio ato de escrever poemas. Através de uma série de evocações sensoriais (olfato, visão, etc), o poeta chama a atenção para o fato de que um poema é um conjunto de palavras vazias e que só ganha sentido quando é preenchido pelas inúmeras vozes do “nós”. Essa pluralidade de vozes dentro de um poema também é motivo do poema “Muitas vozes”, que segue “Não-coisa”.

“That is the question”
Mais uma vez o poeta revisa um de seus poemas antigos. Aqui, Gullar reescreve “Dois e dois: quatro” (Dentro da noite veloz), um de seus poemas mais famosos. Em “Dois e dois: quatro” o clima é de mesmo diante das dificuldades deve-se lutar e seguir em frente, pois “a vida vale a pena”. Já em “That is the question” o poeta substitui a certeza matemática por uma pergunta que remete ao famoso “to be, or not to be: that is the question”, de Shakespeare, e reformulado por Oswald de Andrade no Brasil como “tupi or not tupi”. A certeza que se encontrava na ação política é substituída pela incerteza existencial e do próprio fazer literário. Aceitar ou detonar o poema significa aceitar ou negar a ilusão de que um texto é resultado da transformação de uma subjetividade (espaço íntimo onde o indivíduo se relaciona com o mundo social e externo). Tanto aceitando, quanto detonando o poema, ele estaria compactuando de alguma forma com a lógica burguesa contra a qual lutou em “Dois e dois: quatro”.

Comentário do professor
O professor Marcílio Lopes Couto, do Colégio Anglo, comenta que é importante ter em mente que Ferreira Gullar surge ligado à duas tendências: uma seria a poesia concreta e outra a temática social. Assim, sempre foi um destaque na obra do poeta o esforço de modernizar a linguagem poética e também o esforço de falar sobre a realidade brasileira. A obra "Muitas Vozes" pode ser vista como uma síntese de toda a poética de Gullar, estando presente os temas mais caros ao escritor e trabalhados de diversas formas e estilos.

Além disso, essa obra possui um caráter autobiográfico, onde Gullar trata sobre a infância, sexualidade, pessoas próximas à ele, familiares e outros temas íntimos numa tentativa de resgatar sua própria história. Porém, destaca o prof. Marcílio, ao falar de si próprio através e formas e conceitos estéticos variados, Gullar não abandona o outro e adquire um tom universal. Dessa forma, as “muitas vozes” pode significar também as diversas vozes que compõem o poema, além da do próprio escritor. Por fim, essas “vozes” também fazem referência ao próprio som, pois é um livro que trata muito sobre o barulho, o ruído, o som e, porque não, do silêncio.

Sobre Ferreira Gullar
José Ribamar Ferreira nasceu em 10 de setembro de 1930 em São Luís, Maranhão. Ao completar 18 anos, mudou seu nome para Gullar, uma adaptação do sobrenome de sua mãe, Goulart. Sobre a mudança de nome, Ferreira Gullar declarou que se tudo na vida é inventado, ele também inventaria seu nome.
Publicou seu primeiro livro, Um pouco acima do chão, em 1949, mas esta obra acabou sendo excluída de sua bibliografia oficial. No ano seguinte ganhou um concurso promovido pelo Jornal de Letras com o poema “O galo”. Em 1951, mudou-se para o Rio de Janeiro, onde trabalhou como revisor na revista “O Cruzeiro”. Além dessa, trabalharia também em outras revistas e jornais.

Em 1954, publicou A luta corporal, chamando a atenção dos irmãos Campos e outros grandes nomes do movimento concretista. Dois anos depois, participa da I Exposição Nacional de Arte Concreta no Museu de Arte de São Paulo Assis Chateaubriand (MASP). Em 1959, publica o “Manifesto Neoconcreto” no “Suplemento Dominical” ao lado de Lygia Pape, Amilcar de Castro e outros.

Em 1964 filia-se ao Partido Comunista e funda o Grupo Opinião com Paulo Pontes e outros. Dois anos depois, a peça Se correr o bicho pega, se ficar o bicho come ganha os prêmios Molière e Saci.
Ferreira Gullar é preso durante a ditadura militar em 1968 e parte para o exílio em 1971. Nessa época reside em Moscou, Lima e Buenos Aires, colaborando para o semanário “O Pasquim”. Em Buenos Aires escreve sua mais famosa obra, Poema Sujo, que foi publicada no Brasil em 1976 e serviu como um ato pela volta de Ferreira Gullar ao país. No ano seguinte, ele retorna ao Brasil. Desde então, o poeta publicou diversos outros livros e ganhou vários prêmios.


Suas principais obras são: "A luta corporal" (1954), "Dentro da noite veloz" (1975), "Poema sujo" (1976) e "Muitas vozes" (1999). Além dessas obras, Gullar publicou também contos, crônicas, peças de teatro e ensaios sobre arte e literatura.

terça-feira, 10 de setembro de 2013

Sabe qual foi o primeiro país a ter um exército oficial?



Os exércitos são mais antigos que o conceito de país e existem desde 2500 a.C., pelo menos. Os primeiros grupamentos organizados para defender territórios e atacar inimigos pertenciam a cidades-Estado da Suméria, no sul da Mesopotâmia - território que, hoje em dia, representa o Iraque e partes de Irã, Síria e Turquia. Com a expansão das civilizações na Mesopotâmia, o interesse em áreas estratégicas, como canais e terras produtivas, provocou disputas entre vizinhos. O ato de guerra passou a fazer parte das leis sumérias, com uma cidade-Estado neutra servindo de árbitra nas batalhas. Com as regras, surgiram alianças, dando origem a impérios que guerreavam com cidades estrangeiras. Civilizações da região, como acádios e babilônicos, começaram com exércitos de poucos milhares e expandiram territórios e forças militares aos poucos. Os primeiros soldados lutavam com lanças, machados e adagas, e os "tanques" da época eram carruagens, com um condutor e um guerreiro armado com dardo ou arco composto - feito com ossos, tendões ou feixes de madeira.

segunda-feira, 12 de agosto de 2013

A verdadeira história sobre a Cleópatra


Lendo descubro um monte de informações. Como foi  bom Ler este livro. Eu indico
Cleópatra - Uma Biografia, Stacy Schiff, Zahar



Novos estudos mostram que Cleópatra não era devassa, não morreu picada por uma cobra, era piadista, ótima estrategista... E estava longe de ser bela

Todos na cidade mediterrânea de Tarso já tinham ouvido os rumores. Fofoca sempre correu rápido. Por isso, uma multidão cada vez maior aglomerava-se nas margens do rio Cidno, em 41 a.C., para assistir ao espetáculo que, afinal, foi um dos mais incríveis da Antiguidade. Em meio a uma explosão de aromas e cores de nuvens de incensos, uma barcaça de popa dourada e velas púrpura, com dezenas de remos de prata, subia calmamente pelas águas turquesa. A batida dos remadores marcava o ritmo para a orquestra de flautas, gaitas e liras no convés. Lindas mulheres vestidas de ninfa trabalhavam no leme e nas cordas. Uma escolta de navios de suprimentos seguia atrás, levando louças de ouro, tapeçarias, joias caríssimas. 

Reclinada sobre um divã e abanada por graciosos meninos, vinha uma mulher de 28 anos, ornada como a Vênus de uma pintura. Era, talvez seja desnecessário dizer, a pessoa mais rica do Mediterrâneo. E também articulada, carismática, fluente em nove línguas, versada em política, diplomacia e governo, estrategista militar. Não exatamente bonita, mas dona de um grande senso de humor e de muito charme. Conquistava quem quisesse. O espetáculo era para seduzir mais um - que, a bem da verdade, estava longe de ser qualquer um. Afinal, Cleópatra, a rainha do Egito, não podia conhecer o general romano Marco Antônio, recém-convertido em um dos homens mais poderosos do mundo, de qualquer maneira. Esse era seu jeito de fazer as coisas: de forma surpreendente, sim, mas muito eficiente. 

Ela teve uma das pós-vidas mais movimentadas da História. "Já virou nome de asteroide, de videogame, marca de cigarro, caça-níqueis, clube de striptease, um esteriótipo... E sinônimo de Elizabeth Taylor", diz (sem citar clássicos, como a peça de Shakespeare), a escritora Stacy Schiff, autora do livro sobre a monarca, Cleópatra: Uma Biografia. 

No futuro, talvez o rosto da egípcia se confunda com o da atriz Angelina Jolie, já que a obra deve virar filme 3D, a ser lançado em 2013. Assim como fez Stacy, o esperado blockbuster promete desmontar vários mitos criados em torno da rainha: os de ser uma libertina e traiçoeira, de ter como principal atributo a arte da sedução e de ter morrido picada por uma cobra, entre tantos outros (embora o da estarrecedora beleza, com Angelina no papel principal, seja mais difícil de ser extinto). O problema de Cleópatra é que sua história foi contada pelos romanos - além de serem seus inimigos, eles acreditavam que apenas os homens podiam ser tão poderosos. 
A rainha

A primeira impressão é a que fica. E Cleópatra fascinou Marco Antônio, que acabara de vencer uma guerra civil ao lado de Otaviano contra os assassinos de Júlio César, tio do aliado. O próprio César havia se rendido aos encantos da rainha sete anos antes. O encontro deles, porém, foi mais inusitado. Cleópatra estava exilada no deserto da Síria. No primeiro ano de seu reinado ao lado do irmão e corregente Ptolomeu XIII, com quem se casara aos 18 anos (ele tinha 10) para garantir o trono na capital, Alexandria, em 51 a.C., o Egito sofria com secas e fome. A população se revoltou contra a monarca quando ela financiou uma campanha militar do general romano Pompeu, amigo de seu pai morto. E ela teve de fugir. Pompeu enfrentou justamente César, que, vitorioso, virou o homem forte de Roma e viajou para o Egito. Segundo o historiador da Universidade da Califórnia Stanley Burstein, autor de The Reign of Cleopatra (sem edição no Brasil), Roma precisava do dinheiro do rico país para custear seus altos gastos de guerra. César instalou-se no palácio de Ptolomeu XIII e, numa tentativa de estabelecer a paz egípcia, pediu aos dois irmãos que o encontrassem. Ptolomeu não aceitou e proibiu o retorno de Cleópatra. Ela, porém, ajudada por comparsas, navegou escondida por dias e, em Alexandria, enfiou-se em uma sacola usada para transportar papiros. Assim, foi "despejada" no quarto do cinquentão César. Não se sabe bem o que aconteceu lá. "Seja o que for, Ptolomeu sentiu-se traído ao ver Cleópatra sentada ao lado do romano", diz Burstein. Furioso, mandou cercar o castelo. 

O sítio durou seis meses e ajudaria a revelar a visão de estrategista da rainha. Como Duane Roller escreveu em Cleopatra: A Biography (inédito em português), sem apoio popular, Ptolomeu XIII foi preso e sua irmã Arsínoe tomou o trono. Chamado a conversar com César, ele se desmanchou em lágrimas, pediu clemência e comoveu o general. Mas logo acionou suas tropas contra o casal. O teatro não surpreendeu Cleópatra. Ao contrário: ela mesma teria sugerido a César fingir piedade e libertar Ptolomeu, prevendo que, ao insistir nos combates, ele se tornaria ainda mais impopular. A chegada de reforços romanos encerraria a Guerra Alexandrina. Ptolomeu XIII morreu tentando fugir e Arsínoe foi presa - depois seria executada a mando da irmã. Cleópatra terminou a temporada grávida de César. Era o primeiro filho do general, futuro ditador de Roma. O trono, claro, sobrou para Cleópatra, agora casada com seu outro irmão, Ptolomeu XIV. Era a forma que César encontrara "para abrandar a raiva romana por ele próprio estar indo para a cama com ela", afirma Stacy. 

Nada poderia ser melhor ao projeto político da faraó do que gerar esse filho, Cesário. "A aliança com César, envolta em sedução e romance, foi, antes de tudo, um ato político bem planejado e de expressivas consequências", afirma Maurício Schneider, doutor em egiptologia pela USP. "A rainha conseguiu vencer a oposição, se firmar no trono e ainda arrastou o romano para seus objetivos imperiais, dando-lhe um filho." (Mais tarde, Ptolomeu XIV seria envenenado e Cesário se tornaria corregente da mãe.) Seu reinado seguiu de vento em popa. Ela governava com pulso firme. "Ministrava a justiça, comandava o Exército e a Marinha, regulava a economia, negociava com poderes estrangeiros e presidia os templos", diz Stacy. Ganhou o apoio dos súditos com a economia próspera e fez crescer também seu patrimônio, herdado da família e construído, sobretudo, em transações comerciais. Por ano, calcula-se, seus rendimentos batiam 15 mil talentos de prata. Um sacerdote, cargo dos mais cobiçados, ganhava 15. Em valores atuais, a fortuna alcançaria 96 bilhões de dólares (quase o valor do orçamento deste ano do governo brasileiro para investimentos). A vida de Cleópatra mudaria quando seu amante foi assassinado pelos senadores romanos, em 44 a.C. Seguiu-se (outra) guerra civil, que terminou anos depois com a vitória de Marco Antônio e Otaviano e a instalação do Segundo Triunvirato. Foi quando a monarca fez sua triunfal apresentação a Antônio - e voltou a ganhar um amante poderoso.
 
A mulher

Diferentemente do que se imagina, a rainha do Egito estava longe de ser uma devassa. Júlio César foi provavelmente seu primeiro homem, e Antônio, o segundo (e último). Não há registro confiável de outros envolvimentos amorosos. Além de Cesário, ela teve mais três filhos, todos reconhecidos por Antônio: Alexandre Hélio e os gêmeos Cleópatra Selene e Ptolomeu Filadelfo. O relacionamento dos dois foi longo (11 anos) e, de forma geral, divertido. O casal adorava promover grandes banquetes. Eles fizeram um "pacto de boa vida" e apelidaram a si mesmos de Inimitáveis Viventes.

Cleópatra Thea Philipator ("deusa que ama o pai", um dos muitos títulos que se atribuiu) estava acostumada ao luxo e à fartura desde que nascera, em 69 a.C., segunda de cinco filhos (leia à pág. 29). O pai, Ptolomeu XII, ou Ptolomeu Auletes, era provavelmente um filho bastardo, da dinastia ptolomaica ou lagide, descendente do general, provador oficial e amigo íntimo de Alexandre, o Grande. A Ptolomeu I coube o controle do Egito após a morte do macedônio. Era o início da Era Helênica. Para garantir a própria legitimidade e provar sua ascendência divina, os ptolomaicos faziam como os deuses: casavam-se entre eles. Cleópatra, portanto, tinha sangue grego. Não se sabe quase nada sobre sua mãe, que desaparece na primeira infância da menina. Há dúvidas, inclusive, sobre quem ela seria. Criada por babás, a garota cresceu entre políticos e pensadores. Viajava muito com o pai e teve ótima educação. Podia recitar de cor a Ilíada e a Odisseia. Sabia aritmética, geometria, música e astrologia. Formou-se em retórica e aprendeu nove línguas, inclusive hebraico, troglodita (uma língua etíope) e egípcio (coisa que nenhum ancestral seu o fez).
 
Não se parecia nada (talvez a peruca) com Liz Taylor. "Não há retratos de Cleópatra, a não ser os bidimensionais das moedas que cunhou", diz Roller. "Elas mostram um nariz e um queixo proeminentes, características de família." Segundo o egiptólogo Júlio Gralha, da Universidade Federal Fluminense, isso pode também ser simbólico: ela queria ser vista parecida com os antepassados, de forma a legitimar seu poder. Para compensar a "feiura", era elegante e carismática. "O contato de sua presença, se se convivia com ela, era irresistível", escreveu o filósofo grego Plutarco. "Ela era astuta e inteligente, e isso era grande parte de seu charme", afirma Gralha. Sem contar o senso de humor. "Capaz de fazer os outros rirem mesmo sem querer", resumiu o orador romano Cícero.

Cleópatra foi careca em certos momentos (possivelmente durante as epidemias de piolho). Adepta das tradições locais, nessas ocasiões usava as perucas com as quais sempre foi retratada, embora um modelo com coque fosse mais provável. Costumava associar sua imagem à da deusa Ísis, dominava tratamentos de beleza (adorava os banhos de leite de jumenta) e maquiagem. Segundo Stacy Schiff, ela ainda era fascinada por venenos - estudava muito o assunto, consultava-se com químicos e médicos, sabia as propriedades de cada tipo, quais matavam mais lentamente...
 
A lenda

É impossível dissociar a história de Cleópatra à de Roma. Na península Itálica, as coisas não iam nada bem entre Otaviano e Marco Antônio. A relação era cordial apenas na aparência - Antônio até se casara com a irmã de Otaviano, Otávia, para tentar fortalecer a aliança. Só que ela degringolou de vez em 37 a.C., quando o general mudou para o Egito para viver com a amante. Lá, continuou a comandar seu exército e a conquistar territórios para Roma. Muitos deles, como a ilha de Chipre, parte do atual Líbano, terras na Líbia e na costa da Turquia modernas, porções de Creta e quase todas as cidades do litoral fenício, Antônio "deu" a Cleópatra - que, assim, dirigiu um território tão grande quanto o do auge da Era Helênica. Otaviano ficou uma fera. Ele tinha outra forte razão para odiar a rainha egípcia: ela era mãe do filho legítimo de César, uma ameaça ao seu poder em Roma. (Além de sobrinho de César, ele fora adotado como herdeiro direto.) Quando Marco Antônio pediu o divórcio de sua irmã, foi a gota d’água.

Otaviano começou então uma campanha contra Cleópatra - e, assim, deu início à série de lendas que surgiriam em torno dela. Na sua versão dos fatos, Antônio era um joguete nas mãos da monarca ardilosa, que pretendia conquistar Roma, como fizera com o general. Em outubro de 32 a.C., declarou guerra à rainha. Ela rumou com o amante para o front militar, na entrada do golfo de Corinto. Os romanos, porém, não aceitaram a presença de uma mulher no acampamento. Muitos desertaram, inclusive homens da confiança de Antônio, o que o deixou abalado. O problema aumentou com a Batalha do Ácio. Cleópatra propôs que, em meio ao confronto, seus navios (carregados com grande parte de seu tesouro) furassem o bloqueio e voltassem para o Egito - seguidos pela frota de Antônio. Quando o vento estava a seu favor, ela cruzou a linha inimiga e o general foi atrás dela, mas seus homens não o seguiram. Provavelmente porque estavam lutando no mar contra a vontade (eles preferiam a terra, Cleópatra insistiu no combate naval) ou porque achavam mais honroso continuar brigando pelo controle de seu país do que seguir uma estrangeira.

O fato é que Marco Antônio foi embora arrasado e seus homens perderam a guerra. "Passou-se quase um ano até que o exército de Otaviano entrasse em Alexandria", diz Stanley Burstein. "No intervalo, Antônio caiu em uma profunda depressão, enquanto Cleópatra eliminava os inimigos suspeitos (de conspirar contra ela e o amante)." A rainha também mandou construir um mausoléu às pressas. E teria iniciado um processo de negociação com Otaviano, oferecendo a abdicação em troca de clemência - o romano até concordava, mas queria a cabeça de Antônio. Nem na tormenta o bom humor do casal se dissipou: continuava a promover bebedeiras. Mas, apropriadamente, a dupla trocou o nome da Sociedade dos Inimitáveis Viventes para Companheiros da Morte. Quando Otaviano finalmente chegou a Alexandria, Cleópatra fugiu para o mausoléu, que já abrigava seu tesouro, e mandou um mensageiro dizer a Antônio que havia se suicidado. Sabia que, assim, ele se mataria também. "É claro que Cleópatra havia cedido ao pedido de Otaviano de sacrificar o amante em troca do Egito", diz Stacy Schiff. "Ela é acusada de tantas traições que é difícil saber como entender essa, talvez a mais humana e menos surpreendente."

Fórmula mortal

Ao saber da notícia, o general enfiou uma espada no peito, mas errou o coração e pediu ajuda dos criados, que o abandonaram. Ele teria descoberto que a monarca não estava morta, arrastou-se até o mausoléu e foi içado para dentro. Desesperada, Cleópatra teria gritado e esmurrado o próprio peito, enquanto Antônio morria em seus braços. Os homens de Otaviano invadiram o local em seguida e a prenderam. Dias depois, ela tomou veneno. A cobra que a teria picado é uma invenção, fruto da "conveniência metafórica" - o animal era símbolo do poder dos faraós. Pesquisa do historiador Christoph Schäfer, da Universidade de Trier, concluiu que ela mesma preparou seu coquetel: "Considerando os sintomas, foi uma mistura de acônito, uma planta tóxica, cicuta e ópio." Ganhou um pomposo cortejo um ano depois. Segundo o historiador romano Cássio Dio, a procissão superou todas as outras em "custos e magnificência". A rainha aparecia em seu leito de morte, em gesso pintado, junto com uma serpente. (Outra pista sobre como prosperou a versão da picada suicida.)

Cleópatra morreu em 30 a.C., mas desde agosto do ano anterior o seu Egito não existia mais. Era só mais uma colônia de Roma. E a campanha contra ela, iniciada em vida por Otaviano, consolidou-se após a sua morte. Os romanos atrelaram toda a história da última faraó à sua sexualidade. Afinal, era melhor pensar que a mulher mais poderosa do mundo no século 1 a.C. conseguiu quase tudo o que quis porque era incrivelmente sedutora - e não porque era incrivelmente inteligente.

Poder e sangue

A dinastia Ptolomaica (305 a.C. a 30 a.C.)

Os Ptolomeus se mantiveram no poder casando-se (e matando-se) entre si, entre 305 a.C. e 31 a.C. Na terra dos governantes que eram também divindades, os "estrangeiros" suaram para fabricar uma ligação com os típicos faraós. Por isso, os gregos ptolomaicos assumiram o casamento entre irmãos, um hábito egípcio. O incesto - desconhecido na Grécia, a ponto de não haver na língua uma palavra para isso - evitava "manchas" no sangue azul ou eventuais disputas pelo poder nas bodas com elites estrangeiras. Dos 15 casamentos centrais da dinastia, dez foram entre irmãos. Nos demais, sempre havia algum parentesco. As uniões, porém, não evitaram crimes violentos em conflitos sucessórios. A tia bisavó de Cleópatra VII era esposa e sobrinha de Ptolomeu VIII. Ele a estuprara quando ela era adolescente. Cleópatra perdeu a irmã mais velha, Berenice, morta pelo pai. Ela mesma foi responsável direta pela morte de dois irmãos.
 

Saiba mais... 

O lugar do feminino no Egito

As características da sociedade em que se destacou Cleópatra VII

Cleópatra VII serve até hoje de inspiração e modelo de mulher forte, determinada e que revolucionou uma época subvertendo o papel até então imposto às mulheres em uma sociedade na qual reinavam o silêncio e a submissão do feminino ao masculino.

Apesar de recorrente, a afirmação de que, no Egito antigo, homens e mulheres possuíam igualdade plena de direitos é falaciosa. Muito embora o espaço e a importância devotados a elas fossem muito maiores que os existentes em outras sociedades da Antiguidade, entre os egípcios existiam, sim, hierarquias de gênero. 

Ao longo da história egípcia, a deusa Isis foi o modelo de mãe e esposa a ser seguido. A lenda conta que o marido de Isis, Osíris (então governante do Egito), foi assassinado por seu irmão Seth e seu corpo foi esquartejado e espalhado por diversos lugares. Determinada, a deusa percorreu o país em busca dos membros a fim de trazer Osíris de volta à vida e gerar um herdeiro, Hórus. A deusa Hathor, por sua vez, simbolizava a natureza dual que os egípcios acreditavam existir nas mulheres: são benevolentes, símbolos de fertilidade e prosperidade, mas têm um lado perigoso e destrutivo, que deve ser apaziguado. Os Ensinamentos de Ptah-Hotep, um conjunto de máximas do século 18 a.C. sobre as relações humanas, orienta os homens a amar as esposas e deixá-las afastadas de posições de poder: "Reprima-a, pois seu olho é um vento de tempestade quando ela encara". 

O contexto em que governou Cleópatra, porém, não é o do esplendor faraônico. Trata-se de um Egito pós-dominação grega, bastante influenciado pela herança cultural da Grécia clássica e helênica. A tradição grega vê os espaços de destaque, especialmente na política, como masculinos por excelência. Nesse sentido, Cleópatra comportaria, na visão dessa sociedade, um desvirtuamento, o qual deveria ser condenado. Os escritos sobre a rainha mostram o olhar masculino sobre os sujeitos femininos, no qual características como agressividade, iniciativa e poder de decisão são atributos reservados aos homens, nunca às mulheres, das quais esperava-se submissão. A imagem de Cleópatra como uma mulher perigosa, cheia de ardis e pouco confiável, certamente foi construída por homens que julgavam o papel ativo de uma mulher na política algo intolerável. Mais interessante ainda é observar como sua imagem produzida pelo imperador romano Otávio Augusto destina-se, na realidade, não a disforizá-la, mas a diminuir seu então inimigo, Marco Antônio. Ao destacar as habilidades sexuais de Cleópatra e como Antônio deixou-se cair a seus pés, Otávio deixa desacreditadas as virtudes políticas de seu oponente, que teria provado ser fraco e não ter capacidade de liderança.

Ao tratar do feminino na Antiguidade, há que se ter cuidado: "A maioria das fontes históricas (do período) foi produzida por homens", diz o historiador Gregory da Silva Balthazar.

O império de Alexandre, o Grande, favorece um novo modelo de mulher, que mistura as tradições macedônicas, gregas clássicas e locais, no caso, egípcias. O papel da mulher no período helenístico já não é mais o da passividade e da submissão. Muitas assumem diversos reinos criados especialmente após a morte de Alexandre. As rainhas possuíam direitos e riquezas superiores aos comuns até então. Um caso interessante é de Arsínoe II, filha de Berenice I e Ptolomeu I, que se tornou rainha ao casar-se com seu irmão Ptolomeu II. Após a morte dele, Arsínoe tornou-se dona de um Exército, o qual comandou em batalhas com o intuito de assegurar a continuidade do poder para seus filhos, tornando-se uma regente bastante poderosa.

Falar sobre as mulheres no Egito antigo não é tarefa fácil. Esbarramos no silêncio das fontes, na sua visão masculina e nos limitadíssimos materiais acerca da vida de mulheres comuns, restringindo a análise, quase sempre, às "grandes", como Cleópatra. Mas o esforço é válido. Dando voz a essas mulheres, podemos inspirar diversas outras a lutar para diminuir, cada vez mais, a fenda que segrega o espaço feminino do masculino na sociedade atual.

* Maria Thereza David João é doutoranda em História Antiga e autora de Tópicos da História Antiga Oriental, entre outros livros e artigos publicados.

segunda-feira, 29 de julho de 2013

Mussolini


Mussolini, o César trapalhão
 
Incapaz de organizar um exército combativo, o ditador italiano Benito Mussolini promoveu intervenções militares desastradas e terminou sua aventura dependurado de ponta-cabeça em um posto de gasolina.

"A guerra é para o homem o que a maternidade é para a mulher. De um ponto de vista doutrinário e filosófico, eu não acredito em paz perpétua.” Foi com frases como essas que Benito Mussolini, Il Duce, ascendeu ao poder na Itália, em 1922. Fanfarrão, posudo, dramático, sempre trajando pomposos uniformes militares, o líder da nação italiana se imaginava um novo César. Mais que isso, imaginava para a Itália um renascimento, que levaria o país de volta aos gloriosos tempos do Império Romano. Para isso, o primeiro passo de Mussolini foi calar as vozes discordantes. Em sete anos, ele extinguiu os outros partidos políticos e tornou o a Itália um país de partido único: o fascista. 

Em 1935, Mussolini promoveu a primeira aventura militar do Exército italiano. O alvo? A paupérrima Etiópia, no nordeste da África. Para lá foram enviados 400 mil soldados italianos, apoiados por tanques e aviões. Contra eles, tribos com rifles obsoletos. A vitória parecia fácil. Mas após seis meses de resistência dos etíopes, o exército italiano, constrangido, recorreu a medidas desesperadas. Utilizou gás mostarda – arma química que provoca lesões nos olhos e na pele e é fatal se inalado. Só então, a capital, Adis Abeba, foi tomada. Mesmo diante do medíocre resultado obtido, Mussolini identificou outra vítima: a pequena Albânia. Em 1939, o país foi invadido. Logo em seguida, Il Duce assinou um tratado de defesa mútua com a Alemanha, chamado de “Pacto de Aço”.

Em 1940, Mussolini tomou para si o controle estratégico das forças armadas, mas não se deu sequer ao trabalho de comunicar previamente aos comandantes das tropas quando resolveu declarar guerra à Inglaterra e à França, em junho de 1940. Imediatamente, ordenou que seus soldados na Líbia – que ocupavam o país desde 1934 – atacassem o Egito, então uma possessão britânica. Em 13 de setembro de 1940, mais de 1 milhão de italianos invadiram o país, que contava com uma guarnição de apenas 36 mil soldados ingleses. Um mês depois, a Itália declarava guerra à Grécia.

Logo as invasões italianas se revelaram um estrepitoso fracasso. No norte da África, em três meses, as muito menores forças britânicas reagiram empurrando os invasores 800 quilômetros para a retaguarda e capturando o estratégico porto de Tobruk, no coração da Líbia italiana.
Na Grécia, as coisas iam de mal a pior. Em menos de dois meses, não só os gregos haviam repelido a invasão como agora ameaçavam a Albânia. Só restou a Mussolini pedir a ajuda de Hitler.

Em fevereiro de 1941, para estabilizar a situação no norte da África, Hitler cria o famoso Afrika Korps, sob o comando do general Erwin Rommel. Em abril, forças alemãs realizam uma operação-relâmpago nos Balcãs. Em menos de um mês, Iugoslávia e Grécia foram totalmente ocupadas. Daí para frente, o exército italiano tornou-se uma sombra, sempre dependente das forças do aliado alemão. Isso quando não lhe causava problemas, como em Stalingrado, onde três divisões italianas foram esmagadas por tanques russos no inverno em 1942. Em 13 de maio de 1943, os italianos se renderam no norte da África. Dois meses depois, as forças aliadas invadem a Sicília, ilha no sul da Itália.

Foi o golpe final para a combalida Itália. Em 25 de julho, o rei Vittorio Emanuelle III demite Benito Mussolini do cargo e aponta o marechal Badoglio como novo líder do governo. O Duce é preso. Em 23 de setembro de 1943, o mesmo Badoglio assinaria a rendição italiana e, um mês depois, surpreende o mundo: declara guerra à Alemanha.

quinta-feira, 16 de maio de 2013

A última rainha da França



Menina austríaca que virou soberana da França, Maria Antonieta usou o luxo para se impor na corte de Versalhes. Mas, às vésperas da Revolução Francesa, seu mundo estava condenado a desaparecer.

Virar ícone de uma época – representar uma classe, um modo de pensar e de viver – é destino para poucas pessoas. Uma delas, sem dúvida, foi a austríaca Maria Antônia Josefa Johanna von Habsburg-Lothringen, ou simplesmente Maria Antonieta. O problema é que, dependendo de quem a julga, ela é vista de jeitos completamente diferentes. A controvérsia começou ainda na época de sua morte, no fim do século 18. De um lado, era tida como símbolo da arrogância e da insensatez da monarquia francesa. De outro, era admirada como uma mártir, quase uma santa, sacrificada por loucos que tinham se voltado contra a ordem sagrada das coisas.

Durante muito tempo, a discórdia prosseguiu e, no meio da briga, sobrava pouco espaço para quem queria conhecer a Maria Antonieta de carne e osso. Nos últimos anos, porém, historiadores têm se esforçado para trazer à tona uma imagem mais equilibrada da rainha. Os novos estudos mostram que Maria Antonieta não foi uma mulher fútil e ingênua, mas uma mestra em usar o glamour como arma para se firmar numa corte estranha e hostil.
“Maria Antonieta entendeu que ser uma rainha significava essencialmente interpretar um papel. Mais que isso, ela logo descobriu que, por meio de mudanças na moda, ela podia modificar esse papel e até fugir dele”, afirma a pesquisadora americana Caroline Weber, especialista em cultura francesa do século 18 e autora de Queen of Fashion (“Rainha da moda”, inédito em português). “Isso mostra que, até certo ponto, ela tinha uma percepção bem sofisticada e muito moderna do poder da imagem para mudar a realidade.”
Mas toda a astúcia com que Maria Antonieta se firmou na corte de seu marido, o rei Luís XVI, não lhe serviu de nada quando estourou a Revolução Francesa, em 1789, que proclamou a liberdade e a igualdade para todos os cidadãos. Foi uma das maiores reviravoltas da história, considerada o marco que separa a Idade Moderna da Idade Contemporânea. Era o fim do que ficaria conhecido como o “Antigo Regime”, em que os privilégios da nobreza estavam acima de tudo. Era o fim do mundo de Maria Antonieta.

Tudo para trás

A trágica saga de Maria Antonieta começa em Viena, Áustria, numa corte bem menos chique que a da França. Em 2 de novembro de 1755, a imperatriz Maria Teresa deu à luz uma menina pequenina, porém saudável. Era Maria Antônia, seu 15º bebê. O pai, Francisco I, era imperador do Sacro Império Romano-Germânico (que, naquela época, unia frouxamente algumas nações da Europa Central). Mas, apesar da pompa do cargo, não era ele quem mandava. A titular do comando do Império era Maria Teresa, que também era arquiduquesa da Áustria e rainha da Hungria e da Boêmia (hoje parte da Alemanha).
A imperatriz era uma brilhante estrategista política. Detestava perder tempo – aproveitou o parto de Maria Antonieta, por exemplo, para extrair um dente. Mas, apesar de ser viciada em trabalho, era uma boa mãe. Preocupava-se até com a formação musical dos filhos, que tinham contato com alguns dos músicos mais talentosos da Europa. Um deles foi o prodígio Mozart, recebido em Viena com apenas 7 anos. Reza a lenda que, ao andar pelo chão encerado do palácio, ele teria levado um tombo. Maria Antonieta, meses mais velha que ele, teria corrido para ajudá-lo e lhe dado um beijo na bochecha. “Você é bondosa. Quando crescer, quero me casar com você”, teria dito Mozart.
Mas a mãe tinha outros planos para o futuro da menina. Com a morte de Francisco I, em 1765, Maria Teresa buscou se aproximar das outras cortes européias. Usou uma estratégia bastante comum na época: ofereceu suas filhas em casamento. Maria Antonieta se tornou, assim, pretendente de Luís Augusto, neto do rei francês Luís XV. Com a morte prematura dos pais, o rapaz havia se tornado o delfim, herdeiro do trono. A idéia de Maria Teresa era criar uma aliança duradoura com a França, que vivia entrando em conflito com a Áustria e outros membros do Sacro Império.

A corte francesa resistiu bastante à união com a família austríaca, mas, em 1769, veio a proposta oficial de casamento. As diferenças entre os noivos não poderiam ser maiores. Segundo os relatos da época, Maria Antonieta tinha uma impecável pele branca, boca carnuda, cabelos louros e olhos azuis. Caminhava e dançava com elegância. Já Luís Augusto, um ano mais velho que ela, parecia ter crescido demais para a idade. Era desengonçado, absurdamente tímido e considerado um palerma pela corte francesa. Seu único traço aparente de nobreza eram os belos olhos azuis (mas, como ele não levava mesmo jeito para a perfeição, era levemente míope).
O casamento aconteceu em abril de 1770, numa igreja de Viena. E teve toda a cara de arranjo político, já que foi feito por procuração. No altar, Maximiliano, irmão da noiva, fez o papel do delfim. Logo após a cerimônia, um cortejo com 57 carruagens se pôs a caminho da França. Por exigência da nova pátria, ao chegar à fronteira com a França, Maria Antonieta foi obrigada a deixar para trás tudo o que tivesse alguma relação com a Áustria. Não apenas seu enxoval e suas damas de companhia, mas até as roupas que usava. Maria Antonieta despiu-se e recebeu um vestido dourado para continuar a viagem.
Em território francês, a jovem conheceu Luís XV, então com 60 anos. Depois foi a vez do noivo. Luís Augusto, que tivera pouquíssimo contato com mulheres e certamente era virgem, acabou dando apenas um beijo rápido no rosto de Maria Antonieta. Uma nova cerimônia de casamento foi celebrada em Versalhes, o subúrbio nos arredores de Paris onde residia a corte francesa. Sob os olhos atentos da nobreza, o casal se retirou para a cama. Ali aconteceu algo que iria se repetir durante anos: “Nada”, como escreveu o delfim no seu diário, na manhã seguinte.

Versalhes é uma festa

Não foi fácil para a menina de 14 anos se adaptar à nova vida na França. Claro que Maria Antonieta apreciava estar vivendo no palácio de Versalhes, o mais esplendoroso da Europa. Mas as complicadas regras de etiqueta da corte francesa a irritavam um bocado. Para piorar, a privacidade era praticamente inexistente – em tudo o que fazia, ela era observada pelos membros da corte. Além disso, por ter sido criada num ambiente quase puritano, Maria Antonieta não engolia o costume dos nobres franceses de ter amantes “oficiais”. Era o caso do próprio Luís XV, que, viúvo, levava às festas da realeza a ex-prostituta Madame du Barry.
O estranhamento da jovem com a nobreza francesa fez com que ela fosse apelidada, pejorativamente, de l·Autrichienne, “a Austríaca”. “A parte mais antiga da corte considerava Maria Antonieta uma arrivista sem nenhum senso da civilidade, do refinamento e da elegância francesa”, diz Caroline Weber. Por algum tempo, a princesa teve que suportar a má fama. Até que, em 1774, o rei morreu de varíola. Luís Augusto e Maria Antonieta viraram, assim, os soberanos da França. Num piscar de olhos, a rainha usou sua nova posição para criar uma vida de sonho. Dispensou boa parte das antigas damas de companhia, povoou a corte de gente jovem e bonita e ganhou do marido, agora chamado de Luís XVI, o charmoso palácio do Petit Trianon (que antes pertencera a Madame du Barry), em Versalhes. Maria Antonieta organizava corridas de cavalo e se divertia em passeios de carruagem a toda velocidade.
O que mais fascinava a rainha, entretanto, era o agito da noite parisiense (a cidade, então uma das maiores do mundo, tinha 600 mil habitantes). Além de freqüentar óperas e teatros, Maria Antonieta adorava participar de bailes a que as mulheres compareciam mascaradas. Assim, podia se misturar com plebeus sem ser reconhecida. Como Luís XVI adorava acordar cedo, ele não se incomodava em deixá-la ir se divertir sem ele. O rei, aliás, parecia satisfeito em fazer as vontades de sua esposa. Como ela gostava de jogar cartas, Luís XVI instalou um cassino particular em Versalhes. Na estréia da nova atração, a rainha jogou durante 36 horas seguidas. Perdeu uma boa quantia de dinheiro dos cofres da coroa. Nada comparável, claro, ao que ela gastava para aumentar sua coleção de diamantes.

O poder do glamour

Por trás desse mundo de diversão e festas, Maria Antonieta tinha que suportar muitas pressões. Os nobres que haviam sido excluídos do convívio com a rainha não paravam de caluniá-la. Segundo Caroline Weber, o jeito de Maria Antonieta reagir era manipular sua aparência. “Ela usava a moda como um instrumento político, como forma de aumentar ou sustentar sua autoridade em momentos em que ela parecia estar sob risco, como nos sete anos que se passaram antes que ela tivesse um filho”, diz. Por meio de novas roupas, sapatos e penteados, a rainha se impôs, colocando-se acima de qualquer mulher francesa.
“Foi uma atitude inédita para uma rainha”, afirma Caroline. “Antes, as soberanas francesas tinham de projetar uma imagem dócil, vivendo longe dos holofotes. Quem tentava se envolver em política e exibir seu poder por meio de roupas luxuosas eram as amantes dos reis.” A família real francesa sabia da influência que as amantes costumavam ter nos rumos do governo. Por causa disso, havia exigido, durante as negociações com a mãe de Maria Antonieta antes do casamento, que a futura rainha fosse sedutora o bastante para que o rei não encontrasse distração fora de casa. Deu certo. Fosse por causa da beleza de Maria Antonieta ou pela própria falta de apetite sexual, Luís XVI não dava suas escapadas. O problema é que ele tampouco deixava Maria Antonieta meter a colher na política, o que irritava profundamente Maria Teresa, que insistia que a filha tentasse transformar o monarca num fantoche a serviço de seus interesses.

A posição de Maria Antonieta na corte francesa melhorou bastante depois que ela e Luís XVI finalmente tiveram seu primeiro bebê. Em 1778, nasceu Maria Teresa, batizada em homenagem à avó (a imperatriz morreria dois anos depois). O tão esperado delfim, Luís José, veio em 1781. “Com o nascimento de um filho homem, Maria Antonieta assumia a posição tradicionalmente forte de qualquer rainha da França que tivesse produzido um delfim”, conta a historiadora britânica Antonia Fraser, autora do livro Marie Antoinette – The Journey (“Maria Antonieta – a jornada”, inédito no Brasil), que serviu de inspiração para o filme de Sofia Coppola sobre a personagem, que deve estrear por aqui em março.
Depois do nascimento do herdeiro, Maria Antonieta ganhou coragem para desafiar ainda mais os costumes de Versalhes. Quando teve os últimos dois filhos, um menino e uma menina, ela se recusou a dar à luz em público, quebrando a tradição da corte francesa. A essa altura, Maria Antonieta parecia viciada em flertar com a impopularidade. Flertar, aliás, tinha se tornado uma rotina na vida dela desde o fim dos anos 1770, quando conhecera o belíssimo conde sueco Axel Fersen. Se não existem provas de que eles chegaram a ter relações sexuais, há poucas dúvidas de que os dois se amavam: os diários de Fersen, em linguagem cifrada, falam de uma “Josefina”, que certamente era Maria Antonieta.

Tragédia anunciada

Entre 1779 e 1782, Maria Antonieta e o conde Fersen tiveram que se separar. Ele estava na América, lutando ao lado das tropas francesas pela independência dos Estados Unidos. A saudade do amado foi o maior impacto que a guerra teve sobre o cotidiano da rainha. Nessa época, ela transformou parte do Petit Trianon numa réplica das vilas camponesas da França, com casinhas simples, vacas e ovelhas. Para completar o faz-de-conta, Maria Antonieta passou a se fantasiar de pastora.
Longe de Versalhes, os camponeses de verdade e o resto do povo francês viviam um período difícil. A economia cambaleava, com o governo atolado em dívidas. Os gastos com a guerra na América, que acabou em 1783, só pioraram o cenário. Maria Antonieta ganhou, então, um novo apelido: “Madame Déficit”. Os gastos da rainha tinham um impacto mínimo no total das despesas da nação, é verdade. Mas seus hábitos extravagantes se tornaram o principal alvo da revolta popular contra tudo o que havia de errado no governo.

A péssima colheita de 1788 deixou os camponeses famintos e desesperados. Enquanto isso, a classe média (a burguesia) reclamava dos privilégios dos nobres. Debaixo de tantas críticas, Luís XVI tomou a pior decisão de seu reinado. Convocou, para maio de 1789, uma reunião dos chamados Estados Gerais: uma assembléia reunindo representantes do clero, da nobreza e do povo. Em vez de apoiar as tímidas reformas que o rei pretendia fazer, os Estados Gerais logo foram dominados pelos não-nobres. Em 9 de julho, eles conseguiram criar a Assembléia Nacional Constituinte. Enquanto os camponeses de toda a França se revoltavam contra seus senhores e o povo de Paris destruía a Bastilha (prisão-símbolo do autoritarismo do rei), a assembléia abolia o regime feudal e os privilégios da nobreza.
Em outubro, o povo rebelado invadiu Versalhes. Durante duas noites de agonia, Luís XVI e Maria Antonieta ficaram sitiados com os filhos, vários nobres e uns poucos guardas. Aos gritos, a multidão exigiu a presença da rainha no balcão do palácio. Quando ela apareceu, sua figura altiva acalmou um pouco os ânimos. Mas a família real acabou aceitando as reivindicações do povo: aceitou abandonar a “ilha da fantasia” de Versalhes e se estabelecer em Paris.

A Assembléia Nacional exigiu então que o rei governasse com uma câmara de representantes do povo. Mas Luís XVI não aceitava dividir o poder. Em junho de 1791, ele e a rainha tentaram fugir da França, mas foram pegos e levados de volta a Paris. Sem alternativa, passaram a esperar ajuda da nobreza de outros países. Maria Antonieta manobrou nos bastidores para que seus parentes atacassem a França. A Assembléia Nacional acabou facilitando: como queria expandir a revolução pela Europa, ela deu apoio para que Luís XVI declarasse guerra contra a Áustria. Auxiliadas pela Prússia (hoje parte da Alemanha), as forças inimigas invadiram o país e ameaçaram marchar sobre Paris se a família real sofresse algo. O fato foi visto pelo povo como sinal de que Luís XVI era um traidor.
Em 20 de setembro de 1792, as forças francesas detiveram os invasores. No dia seguinte, a república foi proclamada e a família real foi presa. O ódio contra a nobreza atingiu o ápice. Uma das melhores amigas da rainha, a princesa de Lamballe, foi linchada. Enfiada na ponta de um pedaço de pau, sua cabeça foi levada até a janela da cela de Maria Antonieta, que entrou em pânico e desmaiou.

Em janeiro de 1793, Luís XVI foi guilhotinado. Isolada na prisão, Maria Antonieta passou a vestir apenas preto. Foi levada a julgamento, acusada até de incesto com o filho mais novo. O processo não trouxe qualquer evidência concreta contra Maria Antonieta. Quando o júri exigiu uma explicação sobre o incesto, a ex-rainha gritou: “Se não respondi, foi porque a natureza se recusa a responder tal acusação feita a uma mãe. Apelo às mães aqui presentes!” Foi o único momento em que o público protestou em sua defesa. Condenada à morte, Maria Antonieta viveu um papel que não combinava com ela, o de vítima. Em 16 de outubro de 1793, foi guilhotinada em praça pública.